janeiro 29, 2011

ANTECIPAÇÃO – 26.01.11


É assim como o exercício de cegueira do Saramago. Sempre que Alice pressente o fim de alguma coisa boa na sua vida, ela lhe impõe, antes que o infortúnio se confirme, um castigo como que punisse sua inabilidade para evitar situações de sobressalto ao seu coração já cansado dessa repetição.
Em sendo repetitivo, ela reconhece exatamente quando se anunciam suas expiações, e ao menor sinal ela se coloca de prontidão para o enfrentamento do sofrimento. Chega a ser mesmo uma antecipação ao tempo de infortúnio; sua maneira de fortalecer-se.
Como reconhecesse tais sintomas cíclicos, Alice tenta nesta noite um fortalecimento capaz de fazê-la desinteressada daquilo que mais anseia no momento, nas 24 horas que o dia tem, inclusive nas outras horas que deveriam ser direcionadas ao descanso, ocasionalmente ocupadas com trabalhos gratuitos e aprendizados que não sabe exatamente sua aplicação, como por exemplo, ler os dicionários de idiomas que costuma comprar.
Mas hoje ela foi mais além. Antecipou o abandono que anda rondando seus dias; parou de tomar café e está utilizando seus óculos, com os quais enxerga embaçado na leitura noturna. E tenta lidar com bom-humor nesta situação. Passou todo o dia sem seu cafezinho, o que acredita garante sua hiperatividade. Aproveitou para rever quais os benefícios do seu dia hiperativo. Concluiu que além do cansaço maior, nada mais produz de efeitos que mereçam consideração.
Quanto à leitura noturna, não acredita que seja uma perda incomensurável, já que mais digita à noite do que lê. E para isto o embaçar dos óculos é controlável. Mas, ainda assim ela sabe que necessita desses pequenos sofrimentos para quando chegar a hora da perda maior da razão atual dos seus dias.
Não sentindo firmeza na reciprocidade da razão dos dias do outro, resta-lhe apenas a conformidade que não vem de graça. Então, ela garimpa tal substantivo feminino na esperança de talvez poder adjetivá-lo inventimensamente. Enfim, não se reconhece como razão da vida de ninguém.
Já conseguira um dia sem café e algumas noites com leitura em foco reduzido. Sem falar nas vezes que tateia pela casa escura imaginando como se viraria na cegueira absoluta e irremediável. Tudo como teste para os seus sentidos ora tão carentes de afago.
Por agora espera a hora de fingir-se inabalável no estado de repouso absoluto da solidão, onde nem mesmo a amizade terá restado, prevendo de antemão aquela dor familiar como não deveria ser tão repetitiva, apesar de nunca evitada e indesejada tanto quanto possa seu subconsciente reter.
Ela sabe de todos os sintomas, todos as formas de manifestação do abandono; apenas ela não sabe como evitá-lo. Conclui então através de mais um reflexo aprendido que seria muito mais útil aprender formas de evitar tamanho mal-estar.
Pensa então que muito breve haverá de obter um dicionário que contenha no seu anexo, como faz a moderna edição revisada, uma tabela sobre como conquistar, manter e desenvolver uma amizade, ainda que distante, sem os achaques por que passam as pessoas inseguras sobre sua dedicação especial a um amigo especial.
Confirmou uma vez mais os resquícios de medo que as pessoas têm ao se entregarem a um amigo, sobretudo se este amigo não tem um rosto visível e não sabemos exatamente quem é. Alice não se importa com nada disto. Ela se arrisca nas conversas, expõe-se de forma moderada e se recusa a ser um amontoado de medo do sofrimento por que a pessoa recém-conhecida possa talvez não merecer sua dedicação. Isto para ela pouco importa.
Então, segue conversando com pessoas, quebrando a cara aqui e ali, mas ainda assim conversando. Acredita simplesmente que por detrás de toda prevenção ou falsificação, existe sempre uma pessoa digna de ser estimulada para a amizade.
Lado outro, porque a prudência também costuma fazer parte dos seus bons costumes, vem concomitantemente a uma nova amizade, certa dose de prevenção capaz de minimizar os efeitos que tem sofrido na maior parte das tentativas de amizade que faz.
Daí sua necessidade de abster-se de café por três dias, na esperança de que assim, como acreditam os religiosos, consiga uma negociação superior desta vez, já que a amizade em questão vale o sacrifício. Pois se trata de uma personalidade diferente das demais por que passou.
A amizade retratada seria daquelas que nos levam à reflexão sem ponderação, podendo decorrer daí algo mais do que a amizade; ou não. Tendo em vista as suas dificuldades de relacionamento com homens, e assumindo isto agora sem culpa em sua vida, tanto quanto a Amy quando canta “You should be strong than me”, sabe que ao final, a forte deverá ser ela; a que ensina e a que detém toda a paciência do mundo para invadir sem ser percebida a intimidade alheia também deverá ser atributo dela. Goste ou não, mas, de vez em quando ela preferiria uma inversão de papeis que não vem.
Talvez seja regalia para uma outra encarnação, quem sabe. Se for assim, contenta-se por agora em manter essa amizade, podendo retornar à cafeína que, se não ingerida via café, acabará sendo suprimida pela cafeína de comprimidos para dor de cabeça. Então, bem que alguém poderia oferecer a moça um café fresquinho. Hum, quem sabe no mercado aqui perto não tenha uma degustação de uma nova marca. Acho que vou até lá, pensa ela enquanto se desconecta da sua possibilidade de ser mais feliz..

0 Comments:

Postar um comentário

<< Home