A HERANÇA – 20.06.09
Como de costume, ela retira um dia da semana para visitar a mãe. Foi hoje o dia da visita. Chegou como sempre costuma chegar na casa, com ânimo e distinção sempre atribuindo a ela a sensação de diferença, senão por afinidade ou, ao mesmo tempo insólita.
É sempre a mesma sensação que permeia suas visitas ali, de forma mais enfática quando morou ali por mais de um ano. Foi quando entendeu que deveria estar lá para reorganizar as coisas, buscar pelo que ainda não fora buscado, caminhar trechos até então indevassáveis para ela.
Mas hoje especialmente, ela fora ali sem nenhuma pretensão; nem de arrumar, tampouco de vindicar, exceto uma forma de sentir-se realmente dentro da casa, uma sua característica que prima pelo contrário, contra a qual não pode trabalhar na terapia, mas já sabendo que é problema a resolver, devendo tal falta de espaço que intercede na sua vida ser extirpada de qualquer modo.
Não seria hoje o dia de tal exercício. Como sempre estivera ali para ajeitar alguma coisa fora de lugar, hoje estaria na cozinha preparando uma especialidade que desenboca naturalmente em outro subproduto da cozinha mineira. Aliás, esta é tarefa dominada e cultivada dela.
Preparados os pratos com o capricho e prazer que aplica quando está na cozinha, mais uma diferença dos demais dali, ela prepara o café e deixa a mesa posta para quantos ali chegarem. Inadivertidamente seu assunto, na falta de outro qualquer, vem de súbito em torno da imagem de santos na grutinha pequena, cuja “lampadazinha” deveria servir de abajur, porém, nunca utilizado ali como tal. Ela pergunta à mãe pela grutinha e vê uma outra mais nova; essas peças decorativas demodé, de estima que só encontramos na casa dos pais. Descarta aquela, dizendo querer ver a mais antiga.
Indo até a sala ela a vê ali, com sua brilhatura advinda talvez das suas lembranças de criança, onde acender e apagar a luzinha da santinha era brincadeira com ares de traquinagem, uma das poucas que ousou na sua infância.
Interroga ela agora se tal efeito de luz se dera ainda na sua lembrança por causa do raro momento de traquinagem ao qual deu-se o direito,ou se pela soma dos anos que isto agora representa para ela. Não seria menos do que quarenta e três.
Lembrara exatamente do seu tamanho bem pequeno, brincando com a irmã, saltitando em torno da grutinha acendendo e apagando sua luzinha, até que a mãe vinha colocar fim à brincadeira dizendo que a lâmpada iria se queimar e Nossa Senhora iria ficar muito triste no escuro.
Reviu seus cálculos junto aos pais e todos concordaram que a peça é quase tão antiga quanto os filhos, quando num repente, sua mãe ofereceu a grutinha de presente a ela. E ela aceitou como que recuperasse naquele instante, todo o espaço que houvera perdido, sensação que a acompanha por todos os lugares onde passa, inclusive na sua morada.
Cuidou de receber sua herança em vida, atribuindo o merecimento quem sabe ao seu modo de sempre organizar os lugares por onde anda, as mesas onde vai comer, as visitas que por vezes sente-se obrigada a fazer como representante da família. Todas porém, com o toque do seu trabalho na cozinha, na organização, no que houver a ser feito, sempre com disposição, sem preguiça, como se a casa fosse sua.
Ao sair dali levando sua grutinha como presente que mais parece um filme a rodar em 8mm, mas que por outra, leva-lhe a resgatar um pedaço da sua infância, leva junto também a sensação impreterível de que os tempos estão mudando; uma nova fase se anuncia nos seus dias de busca, restando provado a ela que toda busca tem um final. E diz para si mesma que amanhã irá a uma loja de suprimentos elétricos para comprar uma lampadazinha que acenda sua lembrança, havendo de ser acesa em azul, amarelo, ou quem sabe, vermelho. Amanhã veremos...
Marcadores: um relicário...
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